N.A.
: Em 1983, um grupo de alunos formandos do Culto à Ciência, turma de
1933, resolveu festejar o seu Jubileu de Ouro, requerendo o tombamento desse
tradicional edifício. Nessa ocasião,
um dos participantes desse grupo, o arquiteto Ariosto Mila, que foi professor
emérito da FAU/USP, elaborou um admirável estudo sobre o Colégio _ como parte
do processo para a solicitação do tombamento pretendido _ ilustrado por
belos esboços de sua autoria, que aqui reproduzimos, na íntegra. Colaboração de Rodolfo
Bueno, da turma de 1942, professor da Faculdade de Arquitetura da PUCCAMP, em
Campinas. Veja aqui documento do Tombamento do
Edifício.
Escreveu
Mila, em seu trabalho:
"No
cinquentenário de sua formatura, a turma de Bacharelandos de 1933 do Ginásio
do Estado em Campinas, deseja promover o Tombamento do prédio do Culto à
Ciência.
Um
bem que ligitimamente pertence de fato ao nosso Patrimônio Histórico e
Artístico já deveria ter merecido a oficialização desse tratamento.
Alguns
ex-alunos: Donato Borges, Lúcia Décourt, Homero Gomes, Carlos Casimiro Costa e
eu, iniciamos espontaneamente os entendimentos e elaboramos trabalhos para
início do Processo de Tombamento junto ao SPHAN em Brasília e CONDEPHAAT em
São Paulo.
Neste
momento tão significativo para todos nós reunidos em comemoração ao Jubileu
de nossa formatura vamos poder concretizar a aspiração que acreditamos ser de
todos os ex-alunos de todas as turmas e de quantos desejem preservar a memória
histórica da Cidade.
Nessa
tarefa coube-me a honra de proceder ao levantamento da planta e à redação da
justificativa e resenha histórica exigidas, para o processamento cuja cópia
consta deste folheto que desejo oferecer aos meus caríssimos colegas como
recordação da fase áurea de nossa formação.
Ariosto Mila, 1983
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JUSTIFICATIVA
O retrospecto histórico
do Colégio Culto à Ciência
de Campinas encontra um
inestimável auxílio
na crônica fielmente
registrada no transcurso de sua
vida.
De fato, desde
sua fundação, há mais
um século, ainda
como entidade de caráter
particular, as anotações precisas não
apenas revelam as ocorrências
da instituição, como
refletem também e com
muito brilho, a própria
determinação e fé com
que os responsáveis
motivaram a realização de suas
aspirações, questionando os problemas
e anotando cuidadosamente as soluções adotadas.
É realmente importante
assinalar a vigência de uma tal
mentalidade a presidir os destinos
daquela sociedade que trabalhava para
o futuro no plano da instrução
pública.
Com a mesma
abnegação foi compilada em
1946, pelo professor do Culto
à Ciência, o Engenheiro
Carlos Francisco de Paula, uma preciosa
monografia pacientemente
pesquisada em arquivos do Colégio,
da imprensa e outras fontes.
Nessa publicação que vem
servindo de apoio a todos quantos
se interessam pela investigação
histórica da velha escola,
além dos fatos mais
importantes são
citadas as personalidades que
desempenharam funções na fundação
da sociedade ou na instituição,
constando também a relação
dos respeitáveis professores
e ainda as primeiras turmas
de alunos que
freqüentaram e se formaram naquela casa.
Também nós
dela nos valemos e para
complementação da documentação anexamos cópia
desse interessante trabalho.
O natural desenvolvimento
do país demandando constantemente
novas colocações,
passou a exigir daquela associação
transformações
visando atualizar o bem em
causa no interesse da comunidade,
em especial no que
se refere ao próprio do Colégio que
desempenha vigorosamente,
ainda hoje, suas elevadas funções
no ensino público do Estado
de S. Paulo.
Ressalta daí a importância
e a conveniência em disciplinar a
conservação do imóvel, no que
toca aos valores históricos
e artísticos, sem naturalmente
prejudicar o cumprimento de suas
funções na tarefa educacional
até mesmo por
considerar tais cuidados
como implicitamente incluídos no currículo
cultural do ensino.
O construtor do prédio
foi o Empreiteiro-Construtor Guilherme Krug, o local
da construção, antiga rua
Alegre, recebeu na ocasião a denominação de Rua Culto à Ciência,
hoje número 422.
O primitivo terreno
conservou-se praticamente intacto em
sua área como
patrimônio físico do estabelecimento;
a planta cadastral anexa
fornecida pela Prefeitura
Municipal de Campinas, dá informações sobre
a área involtória num raio
de 300 metros.
Originariamente foi edificado um único bloco com área aproximada de 1.000 metros quadrados, construídos em 9 meses, prazo bastante razoável
até para nossos
dias.
O projeto, inspirado na Arquitetura
clássica francêsa do século XVII, configura, na concepção
original, uma organização
austera que reflete, com
muita propriedade o pensamento
e as possibilidades vigentes no meio e na época.
O edifício em
cujas empenas foram dispensados quaisquer revestimentos deixando transparecer o cuidado
plasmado no preciosismo artesanal
do aparelho de sua impecável
alvenaria, sofreu ao longo
do tempo varias transformações.
As maiores alterações não
se verificaram na planta, mas
principalmente na cobertura
com profundas alterações do visual.
Acompanhando a monografia do Prof.
Carlos de Paula, que registra
as reformas, e analisando documentos e fotos
existentes pode-se tentar estabelecer
presumivelmente a cronologia e o alcance
das várias reformas, reproduzindo em desenhos
livres o aspecto do prédio
nas épocas de interesse.
1874 - No dia 12
de janeiro de 1874 deu-se, como
estava anunciado, o ato solene
da inauguração do Colégio
Culto à Ciência".
A reprodução fotográfica
de uma litogravura existente nos
arquivos do ginásio,
representando o prédio em
perspectiva geometricamente construída, pode ser
considerada fiel ao projeto
inicial que deu origem
ao edifício então
inaugurado.
A cobertura na forma
de duas águas apresentava beirais
sobre a cornija e lucarnas na fachada
principal.
Os oitões laterais
eram guarnecidos por janelas
até o nível do sótão.
1895 - "Alguns
dias depois foi
decretada a lei 284 de 14 de março de 1895 - Fica criado
um ginásio para
o ensino secundário, científico
e literário, na cidade
de Campinas "..
."O Diretor recém nomeado visitou a 16 de agosto
o edifício do antigo Culto
à Ciência, percorrendo todas as suas
dependências, para se inteirar
das obras de adaptação
do prédio e serviços
de limpeza geral".
Uma fotografia da época
mostra as transformações sofridas na situação
jurídica de próprio do Estado.
Foi reformado o telhado que recebeu uma cimalha de elementos transfurados trilobados
e pinhas de terracota sobre
os cunhais.
A fachada ganhou também
um balcão com
gradil de ferro, pilares
e mísulas também em terracota,
além de ornatos como
vasos e lanternas; a porta
principal recebeu uma bandeira de
ferro na qual ficou
registrada a data da nova
fase do Culto à Ciência.
1911 - "Conseguiu ainda
do Governo do Estado que
fossem executadas diversas reformas no prédio, como
sejam a construção de uma sala para
professores, o aumento do salão
nobre, instalações
sanitárias, etc".
Uma foto do prédio, mostra
o aspecto depois desses trabalhos que atingiram o telhado
dando-lhe a forma de quatro águas
e suprimindo as lucarnas
da fachada e os oitões
laterais.
1944 - Durante o ano
de 1944 foi executada uma reforma geral no prédio
do Colégio substituídas as venezianas
das salas de aulas por
vitrais, com apreciável
vantagem para a iluminação.
Por uma recente
fotografia pode-se observar que
os vitrais adotados tinham maior
largura e menor altura
do que as peças
substituídas, obrigando a aplicação de guarnições
de argamassa nas ombreiras
e suplementos
de alvenaria nas vergas,
para arrematar as cicatrizes
abertas na alvenaria;
nessa época foram também
revestidos os cunhais, a cornija e o embasamento.
Esse o aspecto atual
do prédio.
O Ginásio que
integra hoje a rede
de ensino secundário
do Estado, foi acrescido
de novos pavilhões conforme
registra o cadastro
da CONESP, plantas anexas, que
assinalam também a locação
das construções em relação
ao lote.
As características do bloco
principal bem como
o estado de conservação do imóvel estão anotados no memorial
descritivo anexo, pela
qual se evidencia a necessidade
de uma orientação especializada no plano
de preservação como um
bem patrimonial histórico
- cultural, condição que
se reivindica para o edifício em
apreço.
RESENHA
HISTÓRICA
A fundação do Culto à Ciência, magnífica realização
da iniciativa particular
dos campineiros, teve suas melhores
razões no desenvolvimento
que a cidade
experimentava no contexto sócio-econômico do país
no final do século
XIX.
A sociedade campineira vivia a necessidade
de oferecer instrução à juventude,
o que se tornava difícil
pela ausência de recursos
culturais adequados, exatamente no momento
em que um
surto de progresso
projetava a agricultura lançando o café
brasileiro nos mercados
internacionais.
Relata Luiz Saia em
sua obra “A Morada
Paulista": “A região
de Campinas, reduto mais
forte da produção paulista
de açúcar, teve que ceder
suas terras para
o café. Em 1852
contavam-se ali 68 fazendas
de café e 51 engenhos,
dois anos depois
o número de fazendas
sobe a 177 e o de engenhos desce para
44. A ser verídica tal
informação, isso
significaria exatamente o momento
decisivo da expulsão
do açúcar pelo café;
pelo menos no momento
culminante desse processo".
E acrescenta, com dados
da prefeitura, que em
1851 a renda municipal de Campinas
era de 3.065 contos
de réis, subindo extraordinariamente, em
1870, para 29.725 contos de réis.
O arquiteto Luiz Saia,
pioneiro na criação
da consciência preservacionista
dos valores artísticos
e históricos em nosso
meio, fez seus estudos
secundários no Ginásio
Culto à Ciência de Campinas.
Esse aumento
de 1.000% era realmente
surpreendente, quando se
considera que naquela época, em
vinte anos, o capital
normalmente apenas
dobrava seu valor.
O clima social
reinante mostrava-se então
extremamente favorável ao empreendimento,
cuja história
apresenta seu maior interesse
nas primeiras décadas de sua
vida.
O manifesto convocatório
de Antonio Pompeu de Camargo do qual se originou a Sociedade Culto à Ciência
sem fins lucrativos, é de
1869; a pedra fundamental
do edifício foi lançada em 1873 e a instalação
do Colégio Culto à Ciência
verificou-se em 1874.
Fruto da vontade
de alguns idealistas,
o desenrolar dessa vida nem
sempre foi isenta de preocupação.
Muitas vezes dificuldades
apareceram e muitas vezes elas
inspiraram soluções heróicas, provando a têmpera
daquela gente, na superação de crises
econômicas, administrativas e até mesmo
a desgraça de uma cruel
epidemia que poderia
ter aniquilado a cidade.
A febre amarela
que em 1889 castigou duramente
o povo, deixou um terrível
saldo negativo, entretanto
não lhe abalou o ânimo,
antes deu-lhe força para um
glorioso renascimento, brotado do
calor das próprias cinzas,
como nos conta
a Fenix espalmada no brazão
de armas da cidade.
Se houve porém alguma força, alem do âmbito
estritamente material,
que incentivasse o desenvolvimento,
essa foi a do pensamento filosófico.
Floresciam na ocasião as
idéias de positivismo que
marcaram indelevelmente sua influência
em fatos como
a proclamação da República, a abolição
da escravatura e a reforma do ensino.
A filosofia positivista
inspirou a lei Áurea,
transcreveu seu lema
na bandeira de nossa Pátria
e gravou o ideal de sua
mística na arquitrave
de nossa Escola.
Trabalho livre
em "Ordem e Progresso";
crescimento espiritual
no rito do "Culto
A Ciência”.
Ainda que
não se deseje entrar no mérito
dessa filosofia, há que
considerar a influência dessa força na determinação daquele momento histórico que mudou o modelo sócio econômico cultural do
Brasil e a importância do papel desempenhado pelo Culto
à Ciência no preparo da juventude.
Na sessão inaugural
ouviu-se a voz de Campos
Salles, cuja transcrição
é oportuna pela admirável
atualidade dos conceitos
que encerra:
"Senhores. Em presença do fato que hoje solenizamos, quem há que não pressinta através do futuro a grande luz, a luz que ilumina toda a humanidade: - o progresso!
O cidadão já
não se limita a esperar do Estado
aquilo que pode fazer
por si e que
constitui uma indeclinável necessidade
sua. Os meios não
faltam. Quando a vontade
individual não basta,
convoca-se o esfôrço comum
e forma-se a associação para levantar
a escola. Se isto não
é tudo, pelo menos
prenuncia
a próxima solução do mais
importante problema social:
porque significa o despertar da
consciência pública.
E já
muito na verdade quando
sentimos que temos sêde
de instrução. É o sintoma
precursor da saúde moral
dos povos. Sim, a sociedade
caminha, obedece às leis
do progresso e já agora vê o verdadeiro ponto
de partida para os mais
altos destinos no desenvolvimento
da razão, na cultura
do espírito, esse centro
luminoso onde reside por
excelência a distinção
suprema que
caracterizou o ser humano
- a corôa da criação.
Atesta a história que
outrora, quando em
tudo e por toda
parte as aspirações
do homem tinham um limite
invencível na bárbara
lei do privilegio, a educação
intelectual de todo monopolizada era
antes um luxo
da classe aristocrática, do que
uma necessidade dos povos.
A escola
era o apanágio exclusivo
daqueles que, para garantia
de supostos direitos,
julgavam necessário avassalar tudo, sobrepujando o espírito, a alma,
o cérebro do povo. E
ao serviço dos inimigos
da humanidade foi posto
o braço prepotente do jesuitismo.
Extirpar a ignorância
era, pois combater
de um golpe a absurda
desigualdade posta pelos
preconceitos no seio
da sociedade, que assim
se achava dividida em duas classes:
- uma feita para governar
e outra para ser
governada.
Cabeça e braço,
motor e máquina, eis
como estava constituída a humanidade,
Era como uma diferença
de raças.
Mas a filosofia
moderna, com a lógica
inflexível dos sãos princípios,
triunfa pouco a pouco
do preconceito. Um instinto natural desperta no povo
a necessidade de reivindicar os
direitos usurpados. Trava-se luta
gigantesca, opera-se a auspiciosa
revolução das idéias
e o choque dos interesses
opostos entre a aristocracia
e a realeza, fez que
do velho feudalismo da
Inglaterra, nascesse a aurora da liberdade
para todas as nações.
E se é certo que
hoje a necessidade da
instrução popular é entre
nós um ponto
livre de controvérsia,
e se é esta a verdade universalmente
proclamada, cumpre, porque o momento
urge, fazê-la baixar do realismo
doutrinário para a realeza
prática.
Eu conheço, disse um
profundo pensador,
uma força maior que
todas as forças: - é a força do espírito
humano quando ele
é esclarecido; e uma fraqueza,
a mais incurável de
todas as fraquezas: - é a ignorância.
Não se espere, pois,
indolente .pela
ação oficial. Que
o povo se associe para educar
o POVO
!"
O prédio do "Culto à.Ciência”,
testemunha de fatos tão
significativos de nossa
história, já recebeu
a consagração de várias gerações.
Ele pertence
realmente ao Patrimônio
Histórico e Artístico
Nacional; está tombado de fato
pela admiração, respeito
e veneração que o povo
lhe tributa como
a reverenciar o priviliégio de uma vetusta
e honorável personalidade
que lhe foi outorgada
espontaneamente por lídimo
direito.
Que se transcreva, então,
esse direito no Livro
do Tombo.
© Carlos Francisco Paula Neto - última atualização em
23/12/2011
e-mail : carlos@francisco.paula.nom.br