Já vai longe o tempo em que sobraçando o Atlas de Schroeder,
tomava o bondinho em demanda do Ginásio. Era o “Culto à Ciência”. Colégio
que valia por uma faculdade de cultura geral. Curso de humanidades. Ensinavam-se
ali sete línguas e toda a ciência elementar vigente. Curso de seis anos
conferindo o diploma de Bacharel em Ciências e Letras. Professores famosos,
austeros, competentes. Positivistas alguns. Estrangeiros outros. O melhor corpo
docente do Brasil. O currículo adotado obedecia a um princípio de Augusto
Comte - “generalidade decrescente complexidade crescente”.
O Ginásio abrangia o quarteirão da Rua Culto à Ciência, que
fazia esquina com a Avenida Barão de Itapura. Constava de um edifício de dois
andares, três pavilhões laterais, jardim, horta e vasta área de recreação.
O prédio principal comportava quatro salas de aula no primeiro andar. No
segundo ficavam os órgãos administrativos e a sala da congregação. Nos
pavilhões laterais, onde tinham aulas os alunos das séries superiores,
instalavam-se o museu de História Natural e os laboratórios de Física e Química.
O pátio do recreio preenchia a maior parte do terreno. Abrangia o
campo de futebol e duas aléias de bambus. Tudo isso compunha agradável recanto
de aspecto campesino. O bambual, por força da imaginação levava a gente a
pensar naquelas alamedas encantadas dos poemas hindustânicos, sobretudo quando
o vento o agitava, vergando os colmos mais salientes. O farfalhar das folhas
dava a impressão de haver ali um mundo de duendes a gargalhar. E era à sombra
acolhedora do bambual que estudantes, em dia de exame, vinham recordar a matéria,
aninhando-se numa touceira mais aberta ou perambulando pelas alamedas.
Tal fora o meu ginásio que ora me ressurge nesta busca do
passado. Manancial de cultura. Base primacial de minhas caminhadas através de
sendas pedagógicas. Daí a importância do ensino médio na formação de uma
cultura geral indispensável a qualquer profissão, principalmente a quem
pretende se entregar a uma carreira de ordem liberal.
Devidamente preparado por meu irmão José Benedicto (Juquinha),
apresentei-me aos exames de admissão Éramos mais de cento e cinqüenta
disputando cinqüenta vagas. Alcancei-me classificar com a nota sete. Arnaldo
Barreto, General Horta Barbosa, Basílio Magalhães e Raul Soares de Moura
compuseram a banca examinadora.
Éramos sessenta e seis numa só classe, com cinqüenta promovidos
e dezesseis repetentes. Classe mista. Carteiras individuais, mas unidas três a
três. À minha esquerda ficavam três
italianinhos - Duílio Regaíni, Adolfo Milani e Higino Carlos Stelin, todos da
vila de Valinhos e filhos de fabricantes de sabão de pedra. À direita estavam
Ademar Ribeiro e Clóvis Peixoto. E na frente, Costa Manso, Lix da Cunha,
Fernando Brito Pereira, Francisco Alves Filho e Cornélio Pena. Destes, poderia
eu dizer trinta anos depois: um jurista, um engenheiro, um médico, um banqueiro
e um romancista.
As aulas iam de abril a dezembro, com dez dias de férias em
junho. O mês de março destinava-se aos exames de admissão e segunda época.
As férias de verão, porém , se distendiam de vinte e três de dezembro a dez
de março.
A carga horária do primeiro ano, com vinte e duas aulas semanais
assim se distribuía: português (4), francês (4), italiano (2), geografia (3),
aritmética (4), desenho (3) e ginástica (2). Aulas de cinqüenta minutos e dez
de intervalo, a partir das doze horas até às dezesseis, com exceção dos sábados,
dia em que os alunos do primeiro ano só tinham duas aulas.
O estudante que excedesse de quarenta aulas justificadas pelos
pais ou responsáveis, ou dez não justificadas, perdia o ano e não tinha
direito à segunda época. Quanto à distribuição das disciplinas nos anos
subsequentes, teríamos:
2º ano (não se usava a
palavra série): Português, Francês, Italiano, Inglês, Geografia, Aritmética
e Álgebra, Desenho e Ginástica;
3º ano: Português,
Francês, Italiano, Inglês, Latim, Geografia do Brasil, Álgebra, Geometria
Plana, Desenho e Ginástica;
4º ano: Português,
Francês, Inglês, Alemão, Latim, Grego, História Universal, Álgebra,
Geometria no Espaço e Trigonometria, Desenho e Ginástica;
5º ano: Literatura
Geral, Inglês, Alemão, Latim, Grego, Mecânica e Astronomia, História
Universal, Física e Química, História Natural e Ginástica;
6º ano: Literatura
Brasileira, Alemão, Grego, História
do Brasil, Psicologia e Lógica, Física e Química, História Natural e Ginástica.
Quanto ao Ginásio, venci os seis anos sem quaisquer percalços.
Somente no último ano ganhei uma suspensão por cinco dias de aulas, por haver
participado de uma arruaça contra o Diretor. Questão de solidariedade aos
colegas que promoveram o movimento.
Nas séries subsequentes ao primeiro ano, além dos mestres já
citados, rememoro reverentemente, mais alguns: O Professor Erasmo Braga, que nos
lecionou Inglês do segundo ao quinto ano, assumiu a cátedra em 1910. Os livros
Lições Elementares da Língua Inglesa da
“American Book”, e a Estrada Suave de Hewit, eu os conservo até hoje.
Releio-os vez por outra. E quando o faço, parece-me ouvir a voz rouquenha do
grande mestre que, além de se entregar ao magistério oficial, dirigia também
um seminário protestante.
Ensinava
Geometria e Trigonometria o engenheiro Carlos de Paula. Naquele tempo entrava-se
no emaranhado dos estudos dos teoremas sem uma prévia de Lógica. Mas o
professor explicava com tanta clareza, que a gente acabava aprendendo. E como
ficava satisfeito quando atinava com a solução do teorema! Demais, sendo assim
a geometria, tal como era naquele tempo, além de sua utilidade como base de
cultura, valia, ainda mais, para o desenvolvimento do raciocínio.
José
Bento de Assis, mineiro de São João del Rei, ingressou no Ginásio como catedrático
de Latim, mediante agitado concurso em que superou vários candidatos de renome.
Por ser um homem de cor, houvera contra ele, no princípio, certa pressão por
parte de dois professores estrangeiros. Era um professor do tipo social. Muito
humano e sempre disposto a atender os discípulos, mesmo em sua casa. Ao
mencionar o seu nome nesta narrativa, vem à memória o conselho dado e que bem
lembrei-me quando eu, já chefe de família, fora convidado para dirigir o Ginásio
Municipal de São Sebastião do Paraíso, em Minas Gerais, o qual transcrevo,
tal como já citei alhures:
¾”Você
vai lidar com rapazes e mocinhas. É muito jovem para tal empreitada. Fique
desde já sabendo que é muito comum mocinhas românticas se apaixonarem pelo
professor. Começam entusiasmando-se com as aulas. Do entusiasmo vem certo grau
de estima, e a estima pode acender o fogo da paixão. Para evitar os perigos que
essas situações acarretam, adote estas três normas: se se tratar de
adolescente, considere-a como sendo sua filha; se a aluna tiver a sua idade,
tenha-a como irmã; e, afinal, se for mais idosa, lembre-se de que poderia ser a
sua genitora.”
Prosseguindo o meu relatório ainda sobre o Ginásio, informo que
nas Cadeiras de História pontificavam dois famosos mestres: José Augusto César
e Basílio de Magalhães. O primeiro lecionava História Universal. O livro
adotado, tenho-o ainda em minha biblioteca - era a “Histoire de la
Civilisation” de Charles Seignobos. As aulas do professor consistiam em
complementar a leitura que fazíamos em classe, isto é, à medida que este ou
aquele estudante traduzia o trecho do dia.
Quanto a Basílio de Magalhães, tive-o por professor quando
substituiu, durante um mês, o professor de Geografia do segundo ano e, depois,
no terceiro ano, como interino de Latim. Já no último ano do Ginásio, da sua
própria cadeira, que era História do Brasil, ele ausentou-se, aparecendo só
no fim do curso. Estivera desempenhando uma pesquisa histórica a pedido do
Presidente do Estado. Era um professor bastante culto e de tipo estético. Suas
aulas eram verdadeiras obras de arte. Linguagem elevada e dicção perfeita.
Aníbal Freitas, titular de Física e Química, lecionou também
História Natural durante a vacância dessa Cátedra.. Professor bastante metódico,
argüía diariamente, dois ou três alunos sobre o ponto da aula anterior, para
depois passar ao ponto seguinte. Disso resultava que a gente mantinha-se em dia
com a matéria.
Mais
alguns professores completavam o corpo docente do afamado estabelecimento: João
Von Atzingen e Ernesto Kuhmann, que se
encarregavam da Língua Alemã; Bento Ferraz, Catedrático de Literatura; Álvaro
Müller, que na Cadeira de Psicologia e Lógica dava aulas discursando; Henrique
Cartésio Vogel, dotado de notável cultura helênica, mas pouco exigente nos
nossos estudos; José Vilagelin e Jorge Hannings, que tinham a seu cargo,
respectivamente, as aulas de desenho e de Ginástica.
Dos sessenta e seis alunos do primeiro ano, apenas treze chegamos
ao bacharelato, ou melhor, ao sexto ano. Na passagem do terceiro para o quarto,
muitos deixaram o curso seriado a fim de prestarem exames de madureza
diretamente nas escolas superiores, valendo-se das concessões da Lei Rivadávia.
Dois outros, Rui Pinheiro e Antônio Sainati abandonaram o curso no quinto ano
para estudarem engenharia.
Seria infindável que fosse citar os nomes de todos os meus
companheiros de ginásio. Lembro-me, contudo, por serem mais chegados a mim ou
pelo brilho nos estudos, de Homero de Sousa Camargo, Durval de Menezes, Délia
Ferraz, Ione e Marieta Rosa Martins, Cornélio Pena, Lix da Cunha, José Maria
Aranha, Geraldo Resende, Washington Cardoso, Messias Teixeira de Camargo, Danton
Segurado, bem como dos meus doze companheiros de formatura - Clóvis Peixoto,
Arnaldo Godoi, Oscar Carrera, Juvenal Hudson Ferreira, Horácio Aranha,
Margarida Pereira, Noemie Décourt, Carolina de Sousa, Alice Pupo Nogueira,
Celina Duarte, Joana Alvarenga e Maria Hennings.
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BIOGRAFIA
DO
Tabajara Casas Nogueira Pedroso, Professor Tabajara Pedroso como era mais conhecido, nasceu em Campinas, Estado de São Paulo, em 07/05/1897. Era filho de Antônio Nogueira Pedroso, natural de Campinas/SP e Urbana Casas Fábregas , nascida em Marin, Província de Pontevedra, na Galícia, Espanha.
Pelo lado paterno Tabajara Pedroso tinha o sangue de ilustres famílias paulistas e mineiras, dentre aquelas, Pedroso de Barros, Pedroso de Moraes, Amaral Gurgel, Camargo, Prado e outras. Era descendente de Fernão Dias Paes, O Caçador das Esmeraldas, de João Ramalho e da índia Bartira, de Juseph Ortiz de Camargo, de Martim Affonso de Souza, da família Cabral, do Rei Affonso Henriques , de Carlos Magno, conforme atesta a coleção “Genealogia Paulistana”, de Silva Leme. Tinha uma ancestralidade mineira, oriunda de Baependi, sendo descendente do Capitão-Mor Thomé Rodrigues Nogueira do Ó.
Pelo lado materno era descendente de famílias catalãs, Fábregas e Rocafort, que participaram da industrialização de produtos pesqueiros na Galícia e de famílias radicadas nas Astúrias e na própria Galícia.
Tabajara era o quinto em uma irmandade de sete. Tornou-se Bacharel em Ciências e Letras pelo famoso “Culto à Ciência”, de Campinas. Iniciou-se no magistério na mesma cidade, foi também, professor de escola rural, alfabetizando imigrantes, em Santa Eudóxia. Foi professor no norte do Paraná, à época de seu desbravamento. Formou-se Engenheiro Geógrafo e veio para Minas Gerais para dirigir o Ginásio de São Sebastião do Paraíso, , por quase dez anos. Lecionou em Batatais, São Paulo e se instalou em 1934 em Belo Horizonte.
Na capital do Estado de Minas Gerais, o professor Tabajara Pedroso foi Vice-reitor do Ginásio Mineiro, Diretor do Colégio Marconi, Diretor da Escola Normal Modelo, atual Instituto de Educação, Professor da Escola da Fazenda do Rosário, Professor dos Colégios Santo Agostinho, Dom Silvério e Anchieta. Foi Professor Emérito, Professor Catedrático, Diretor e Fundador da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FAFICH) da UFMG, fundador da Faculdade Santa Maria (ministrou a primeira aula), que depois se transformou em parte da atual Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, onde também foi professor. Foi Reitor e Professor Catedrático do Colégio Estadual, Chefe Censitário – Censo 1970 – IBGE, Chefe da Comissão Estadual de Moral e Cívica, dentre outros.
Tabajara Pedroso criou o primeiro curso noturno no Brasil para estudantes secundaristas, publicou dezessete livros, fez parte da Academia Municipalista de Letras e desenvolveu estudos publicados em Congressos Internacionais de Geografia e outros países, onde também proferiu palestras. Desenvolveu um trabalho que foi considerado por importante geógrafo francês, uma das primeiras teses sobre ecologia no Brasil. Poliglota, muito mais do que tudo isso, foi um grande educador, e doou a sua vida a essa Arte e forma de dedicação ao próximo. Publicou diversos ensaios em jornais (Estado de Minas, e outros), escreveu peças de teatro que foram levadas ao ar pelas Rádios Inconfidência e Guarani e deixou inéditos, para publicação futura, três romances e um Dicionário da língua tupi-guarani, denominado “O Tupi para Geógrafos – Toponímia Tupi-Guarani”. Além disso, deixou para publicação esta autobiografia, que ilustra toda a sua trajetória na “formação de homens e caracteres”.
Seu nome está eternizado em ruas dos municípios de São Sebastião do Paraíso e Belo Horizonte, Minas Gerais e em uma Escola da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Na realidade suas ações como educador e professor foram muito importantes e bem aceitas. Primou sua vida a três fatores básicos: Família-Educação-Trabalho
Tabajara Pedroso casou-se com a mineira Maria (Rezende) Pimenta Pedroso (Nicota), de tradicionais famílias de São Sebastião do Paraíso e desse casamento tiveram seis filhos, Moacir, Nupotira, Teresa, Leonor, Yara e Ceci. Tabajara recebeu na década de setenta, o título de Cidadão Honorário do Estado de Minas Gerais. Faleceu em Belo Horizonte, em 24/07/1987, aos 90 anos de idade.
Trecho do livro e dados biográficos gentilmente fornecidos por Rodrigo Pedroso de Carvalho, neto do prof. Tabajara Pedroso, que publicou a autobiografia "VIDA DE PROFESSOR
© Carlos Francisco Paula Neto - última atualização em
21/09/2018
e-mail :
carlospaula@cultoaciencia.net