Profª
Quinita Ribeiro Sampaio
(Para meu amigo Guilherme Nucci.)
“A morte não é nada.
O
cordão de união não se quebrou.”
S. Agostinho
No princípio era o verbo. Ou a palavra. Depois veio a imagem. Assim se fez o Site do "Culto à Ciência", criado por Carlos Francisco de Paula Neto.
Convocados por essa cruzada, Guilherme Nucci, Moacyr Castro e eu passamos a compartilhar do projeto, vivenciando-o como se fosse nosso. Não fujo à verdade, se disser que passamos, nós os quatro, a formar uma confraria: três alunos do Colégio e uma professora.
No princípio era o Site. E muito tínhamos a deliberar. Nossas mensagens eram como conferências on-line. Por isso, sem nada planejarmos, começamos a endereçá-las aos outros três. E consolidou-se então uma correspondência quadrangular.
O respeito e a confiança que nos devotávamos estabeleceram entre nós uma verdadeira comunhão. Nada ficava decidido, sem que todos tivessem entrado na liça. Um dia o Guilherme proclamou-nos Mosqueteiros, fechou a mensagem com o lema "Um por todos e todos por um" e assinou D’Artagnan. Ora, a palavra do Guilherme tinha força. Jamais a pronunciou em vão. Pois foi essa palavra que selou a investidura em nossa "mosqueteiragem", como ele costumava brincar.
Guilherme era dono de uma espontaneidade límpida e pura. Estou certa de que essa naturalidade, tão fácil nele, era a expressão de sua maneira de ser, leal e franca. Não era pessoa de disfarces. Suas palavras não soavam a moeda falsa, não serviam de encobrir, senão de revelar seus propósitos. Eram palavras transparentes, música sem dissonâncias, em que se concertavam sinceridade e emoção. Raro privilégio nos foi dado! Ele escrevia-nos e suas mensagens eram seu fiel espelho, sua presença viva.
Foi rica a nossa correspondência, porque nossos interesses e paixões eram comuns. Dividimos confidências, quase sempre risos, mas também tristezas.
Por vocação, Guilherme era um memorialista. Bem poderia ter escrito um livro de memórias, tão primorosamente lidava com tramas e personagens de seu passado. Gostava de falar desses personagens, seus pais, seus mestres, e de muitos outros que, pelos anos afora, povoaram seu quotidiano, exatamente como os que se cruzam pela vida de qualquer um de nós. Mas como tinham sabor, filtrados pelo seu espírito!
Suas mensagens muitas vezes abriam horizontes surpreendentes. Resolveu um dia mandar-nos um poema de Adélia Prado, o "Mater dolorosa". A essa mensagem deu o título de "Repartindo", verbo que retrata com fidelidade o seu jeito dadivoso de conviver com os amigos.
Não resisti à beleza do poema e respondi-lhe, tecendo meus comentários. E então voltou a escrever-me o Gui:
Dª Quinita,
"No ‘Mater dolorosa’ não estaria também contido um amor infindo da filha pela mãe, aquele amor de criança, mesmo, quando a mãe é sobrenatural, de tão poderosa e valente, de tão gostosa e aconchegante, de tanta presença e esteio? Aquele amor que nos faz olhar embevecido para um simples modo diferente de ela segurar um lápis, por exemplo, até os seus ‘superpoderes’ de tomar um trem com três filhos e quatro malas? Não estaria ali contida essa idolatria da filha pela mãe, quaisquer que sejam a mãe e a filha, mesmo as mais sofridas e simples como aquelas? Aquele amor que só por se estar com ela na beira de um rio, comendo um pão com bola de carne, nos faz sentir no céu? Ou estou vendo ali coisa que não existe?"
Ele estava mais do que certo! Eu não tinha visto o poema por essa perspectiva!... Então lhe retornei, expressando a minha admiração: "Querido Gui: Que belíssima interpretação você fez! Quem me dera assinar essa página lúcida e inspirada!"
E era assim... Escrevíamo-nos diariamente e, em assuntos mais inflamados, não raro trocávamos várias mensagens num dia! E foram-se estreitando os laços que nos prenderam. Talvez quiséssemos compensar-nos dos anos em que permanecemos distantes.
No último dia de agosto de 2003, por ter-se inscrito em um Congresso em São Paulo, Guilherme quis vir até Campinas. Propus que nos reuníssemos num almoço em minha casa. Gui contrapropôs-me: que fosse um café da manhã. Para mim, desde que viessem, estava perfeito. O horário, deixei também a seu critério. Marcou para as oito, "para termos o maior tempo possível", disse-nos. Foi o reencontro dos Mosqueteiros! D’Artagnan aqueceu os nossos corações com sua palavra cativante, seu entusiasmo pela vida, seu carinho! Não se desmanchará jamais, no cenário de minha casa, a lembrança desse dia.
Dois meses depois, retribuí-lhe a visita, fui a Vila Velha... Com sua mulher e filhos, Cris, Tiago e Isabela, participei da Missa, na mesma igreja a que ele sempre gostava de ir. Mas o Guilherme estava ausente. Pela sua casa, entretanto, restava o calor de sua inteira presença. Em cada canto, mostrava-se uma feição de suas preferências e de seus talentos. No jardim, próximo à porta de entrada, um canteiro de flores vermelhas. Eram suas – disse-me a Cris. Ele as cultivava. No atelier, lá estava a bancada em que, com uma técnica singular de sobreposição de cores e formas, criava seus belos quadros. Mais adiante, a salinha do computador, lugar de nossos preciosos encontros. E aí mesmo, num armário escuro, os portfólios tão perfeitos, em que tinha o hábito de arquivar tudo o que lhe fosse mais caro. Num deles guardava as crônicas que escrevia para o jornal "A Gazeta" de Vitória. Em um outro colecionava, há muitos anos, frases colhidas de suas leituras. (Num de seus últimos e-mails, contou que andava lendo "Cartas a um jovem poeta", de Rilke , escolha que bem reflete sua fina sensibilidade literária.)
Minha visita foi como uma peregrinação. Por toda a parte, o calor de sua inteira presença. Mas ele já não estava entre nós. O nosso companheiro havia partido para sua viagem definitiva.
© Carlos Francisco
Paula Neto - última atualização em
21/09/2018
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