SAUDADE
Ralph
Tórtima Stettinger
Eu ainda era meninão. No casarão acolhedor do velho “Culto à Ciência”,
me preparava então para as batalhas que havia de travar pela vida afora.
Veja-se que já se passou muito tempo. Nem por isso, entretanto, se diluiu, na
minha lembrança, certa imagem dele, cravada numa época para mim inesquecível.
Ele fazia um tipo bonito de homem. Estatura mediana, compleição forte, era, na
postura, como de resto em tudo, elegante, nobre. Os cabelos ondulados,
precocemente chegados à brancura que lhe refletia a alma, representavam a
moldura perfeita de um rosto sério, sem grandes sorrisos, retrato de
austeridade.
Lembro-me tão bem dele, caminhando compassadamente pela classe, sob os
olhos atentos de uma platéia magnetizada. A voz era grave, ligeiramente
nasalada, e descia e se alteava, ao sabor das emoções. Dicção impecável, as
palavras lhe brotavam dos lábios sempre bem articuladas. Melodia e ritmo
marcavam-lhe a fala pausada, gostosa de escutar. Punha vida em tudo o que dizia.
Havia nele uma chama especial que contagiava. Seduzidos, nós o ouvíamos num
silêncio quase ritualístico. Exatamente assim, impressionante assim,
foi a figura do mestre de todos, Francisco Ribeiro Sampaio. Essa imagem jamais
vai apagar-se da memória dos que um dia tivemos o privilégio de beber-lhe as
lições preciosas e de desfrutar do seu afeto.
Com razões de sobra, o mestre valorizava muito o que fazia. Reconhecia,
claro, a enorme importância da matéria que ministrava com rara competência.
Muito cioso do seu papel de educador, sabia ser enérgico, rigoroso (e como
sabia...), mas sem nunca resvalar pela prepotência. Não media esforços e dava
tudo de si para nos fazer aprender a língua pátria e, quem sabe, amá-la um
dia como ele a amava. Por isso mesmo, não tolerava manifestações de
desinteresse. Aí, sim, se aborrecia de verdade. E à repreensão educada não
deixava faltar a firmeza do brio ferido.
Culto, inteligente, sensível ao extremo, seus ensinamentos não se
restringiam à matéria lecionada. As expressões mais singelas refletiam sua
visão de mundo diferenciada, traduzindo conceitos valiosos. Beneficiários de
sua riqueza interior, nossa gratidão para com ele foi aumentando com o passar
do tempo, à medida que o futuro foi fazendo-se presente e a vida ficando menos
tolerante, mais exigente.
Intelectualmente, nosso mestre sempre se mostrou permeável. Bastante
ligado aos clássicos da literatura, revelava, entretanto, vivo interesse pelos
autores modernos. Se discorria com brilho sobre Camões, Machado, Vieira, por
exemplo, não o deixava por menos quando enveredava por “Macunaíma”,
“Vidas Secas”, “Grande Sertão: Veredas”, deixando nítido seu
entusiasmo por Mário de Andrade, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa.
Foi um homem honrado, verticalíssimo. Provas de caráter ele as deu, no
curso de toda a vida. Em sua passagem pela vida pública, foi modelo de
probidade e competência. Jamais deixou faltar grandeza, nem mesmo aos seus
gestos menos importantes.
Certa
característica de sisudez do mestre não nos distanciava dele. Todos o sentíamos
como amigo. Tinha um coração aberto, aconchegante, sempre disposto a ouvir os
que o procuravam para um conselho ou até para colher uma palavra de conforto.
Conhecido e respeitado por toda Campinas, foi uma legenda viva e teve prestígio
de instituição. Discreto nas manifestações de seu humor britânico, mestre
Sampaio sabia apreciar como ninguém um lance de graça. Era quando deixava
escapar, cheio de charme, aquele sorriso inconfundível de canto de boca,
expressão suprema de ternura.
Ah, não
é fácil,
a saudade já começa a doer
fundo. Nenhuma surpresa.
Afinal,
perdemos o nosso poeta, “poeta frustrado”, como ele injustamente se
considerava, apesar da fina inspiração que o distinguia (que o diga Iaiá, sua
musa).
E,
quando se perde um poeta, a perda é imensa. Mas que fazer, se a vida é assim,
e se nem mesmo os poetas são eternos. É muito triste. Se eles são o que resta
de sol neste mundo de sombras, seria preciso impedir que eles morressem... Com
seu canto, em que se projeta a dimensão superior que lhes é própria, eles
enfeitam a vida, que se enfeia sempre mais um pouco, quando um deles deserta e
se transforma em saudade.
Você se foi, mestre querido, mas nós, seus alunos, que só tivemos razões
para querer-lhe e admirá-lo, jamais vamos deixar de reverenciar sua memória.
Você foi luz no nosso caminho. Já por isso, mestre-amigo, não há como esquecê-lo.
© Carlos Francisco
Paula Neto - última atualização em
21/09/2018
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carlospaula@cultoaciencia.net